A proximidade do meu aniversário de 60 anos (!!) fez com que eu começasse a pensar nas vidas que já vivi e nas que, esperançosamente, viverei.
Gosto de contar histórias, e de vez em quando me apercebo contando alguma das muitas histórias que vivi. Sempre me maravilho com a variedade e quantidade de vidas que tive oportunidade de experimentar. Hoje, vindo para o trabalho, considerei escrever, tanto pelo prazer de recordar, quanto para exteriorizar acontecimentos, sentimentos, pensamentos ...
Entre as recordações da infância, que vêm como flashes, alguns com movimento, está a casa da minha avó Jovina, no bairro do São Francisco, em Catanduva. Ela e meu avô, Joaquim, ainda na casa onde minha mãe morou quando conheceu e se casou com o papai. Era uma casa simples, mas na minha memória ela tem cheiro de comida muito gostosa, de fogão à lenha.. sopa de grão-de-bico gordurosa de frango, saborosa como nunca mais provei. Ao lado da casa, uma parreira de uva verde, que lembro direitinho de colher no pé .. hummm.. Era lá que passávamos os natais, páscoa, as festas. Lembro também que as mulheres adultas (vovó, mamãe e tia Cidinha) cozinhavam e eu e minha irmã ficávamos com a louça (aiaiai).
Meu avô disse uma vez que a esposa era muito brava. Mas ela trazia mágoas e muitas histórias tristes na sua mala, que abria de vez em quando, em especial quando ia, geralmente ao por-do-sol, para o quintal, sozinha.
O marido dela não era meu avô de sangue, mas foi o único avô materno que conheci até os 14 anos, e claro, mesmo depois, o carinho persistiu. Era o meu avô Joaquim: ranzinza, mas que nunca vi levantar a voz. Declaradamente adorava minha avó. Ela, uma vez me disse que o primeiro casamento é por amor, o segundo por conveniência. Ele era seu segundo.. então, tenho muita ternura por meu avô, mas temo que provavelmente ele não tenha tido seu amor e devoção correspondidos na mesma medida. Ele era português, tinha vindo adulto para o Brasil (éramos sua única família), trabalhou na estrada de ferro. Era tão trabalhador e levava tão a sério seu compromisso que nunca faltou.. e um dia, ao chegar ao trabalho, foi mandado de volta, porque tinha chegado o tempo de aposentar com meses de antecedência.
A casa da minha avó era um primor de limpeza e brilho. Sem empregada (ela não aceitava), os dois se ocupavam da limpeza, da cozinha, das compras, sempre juntos. Tenho lembrança de sair da casa da minha avó com minha irmãzinha, indo para nossa casa, e falamos mal dela (era brava com a gente.. rs).. e uma vizinha ouviu e foi contar. Que vizinha enxerida!!!! rs
Sei que minha mãe deu "a" bronca na gente e aprendi uma lição. Se formos falar mal de alguém, devemos nos certificar de que ninguém esteja ouvindo!!!
Se eu tivesse que escolher uma palavra para definir a vida da minha avó, seria "trágica".
Ela era a filha mais velha de um fazendeiro e era companheira do pai. Iam pescar juntos. Ele era um caboclo casado com uma portuguesa de olhos azuis, com quem teve vários filhos. Minha avó, entretanto, era bem morena, uma baiana pura.
(foto da vovó)
Quando a mãe de minha avó morreu, deixou minha avó adolescente e vários irmãos e irmãs mais novos. Nessa época eles moravam em Ibirá, Estado de São Paulo, e o meu bisavô voltou para a Bahia para buscar a nova esposa,que era da idade da filha mais velha, minha avó. Ela se apaixonou por um empregado da fazenda, o Manoel (Manezinho). O pouco que sei sobre ele inclui a profissão, barbeiro, e o gênio forte. Se algum desafeto entrasse na barbearia, ele saía pela porta dos fundos e não atendia.
Os dois ficaram juntos o suficiente para terem quatro filhos. O quinto seria minha mãe. Minha avó estava grávida da minha mãe quando brigou com o marido e foi para a cidade procurar emprego. Esse é um fato. O que causou isso não sei. O boato é que uma irmã disse para o Manezinho que minha avó não iria voltar. Então, ele sumiu com os quatro filhos, sem saber que deixava uma filha por nascer. Quando minha avó voltou (a cabeça esfriou), não encontrou mais ninguém. Perdeu o marido e os quatro filhos. Voltou para a cidade, Catanduva, grávida e sozinha. Não sei como ela fez para aguentar a barra de ter e criar uma filha sozinha. Sei que trabalhou no Hospital Padre Albino e em casas de família como cozinheira. E foi no trabalho, numa casa dessas, a menininha que era minha mãe viu um piano. E decidiu que um dia teria um piano e tocaria nele. Esse sonho ela realizou. Teve um piano e chegou a começar a aprender a tocar piano e violão.
A menininha que nasceu sem o pai, em 1935, sofreu preconceito e esse foi um dos traumas que fizeram com que transformasse na mulher que tive o privilégio de conhecer, admirar, temer, e nunca compreender totalmente. Um dia uma professora pediu que ela escrevesse em um trabalho o nome da mãe e o do pai. Ao responder que não tinha pai, recebeu uma resposta irada, que ela guardou consigo para sempre. E o trauma foi passado para os filhos, na forma de orgulho ao ver na certidão de meu casamento os nomes dos meus pais (eu tinha os dois!!!!). Se a palavra para a vida da minha avó é "trágica", a da minha mãe poderia ser "traumas". Ela juntou durante a vida muitos traumas e quando falava sobre eles era como se estivessem todos presentes, apontando o dedo para ela e sua infelicidade. Uma atitude recorrente dela era ficar trancada em seu quarto, enquanto outra era de acordar gritando com pesadelos. Uma vida definida pelos traumas sofridos.
Vidas na infância
Não tenho muitas memórias da infância. Sei que minha mãe saiu de casa, quando eu tinha 4/5 anos. Ficamos eu e minha irmã que era um bebê, no máximo 2 anos. Há mais de 50 anos foi notícia. Meus pais frequentavam uma igreja evangélica e era uma comunidade pequena, restrita, que não teve escrúpulos em condenar minha mãe e colocar nela um carimbo de "sabe o que ela fez?", enquanto meu pai era "como esse coitado aguenta?". Ela ficou poucos meses fora e voltou para a casa da minha avó. Uma das imagens, talvez a mais antiga que tenho, é de estarmos em um ônibus, voltando da casa da minha avó, onde sei que tínhamos ido ver minha mãe. A foto da memória é a do ônibus, sei o lugar, perto da rua 7 de setembro. Minha mãe pediu para voltar: não conseguiu suportar a saudade das filhas. Dessa época tenho uma imagem de meu pai em cima de minha mãe, os dois brigando. Ela no chão. É um flash. Morávamos nos fundos da relojoaria onde meu pai consertava e vendia relógios. Lembro também de minha tia Cidinha estar na casa conosco e ela e minha mãe irem para o portão da casa, e eu queria saber o que tinha de importante na rua, ao que responderam que iam ver "o movimento". Na minha imagem de criança, fiquei curiosa e com perspectiva de saber o que era o movimento!!!
Nessa casa moramos até eu completar 6 anos. E aí começou a minha vida na escola.